O Movimento Punk, surgido no final da década de 1970, encontrou no ABC Paulista um terreno fértil para se desenvolver e replicar. A região operária, berço da industrialização brasileira, cheia de contradições entre o capital e o trabalho, viu o Punk se alastrar (em plena ditadura cívico-militar) entre a juventude de forma rápida, se infiltrando nas periferias de Santo André, São Bernardo, São Caetano, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Diadema e Mauá de tal forma que hoje, quase cinco décadas depois, o movimento tornou-se parte da história do ABC, consolidando-se como um patrimônio cultural da região e que mantem total identificação com o território e suas peculiaridades.
Mas a rebeldia que o Punk encarna e personifica não era novidade na região. Já nas primeiras décadas do século XX a indignação, o ódio e a revolta contra o sistema ecoavam dentro das fábricas Abcdistas, onde a ideologia anarquista trazida por imigrantes espanhóis e italianos predominava. Com uma massa de trabalhadores pobres e explorados a serviço de tecelagens, olarias e cantarias, a juventude de cem anos atrás já mostrava sua verve contestatória e combativa, que pode ser comprovada com o episódio da greve de 1919 ocorrida na fábrica Ipiranguinha, que culminou no assassinato do jovem Constantino Castellani (Protopunk).
Para contar essa história e seus desdobramentos até os dias de hoje, Jairo Costa grava, desde janeiro de 2022, de forma independente, no estilo “do it yourself” (faça você mesmo), o documentário “Punks do ABC”, que registra também o histórico conflito entre os membros do movimento na região e sua rixa com os Punks da cidade, os famosos Punks de São Paulo.
E aí está a importância desse documentário. Por longos anos a história da suposta hegemonia dos Punks de São Paulo sempre foi contada e dá protagonismo àqueles da capital paulista que atingiram um certo acesso e estrelato midiático, eclipsando toda uma história acontecida no subúrbio operário. O documentário “Punks do ABC” vem para suprir essa lacuna, expondo pela primeira vez o pensamento crítico dos que fizeram o movimento na região.
Dentre várias histórias de destaque, o documentário fala de algumas das primeiras bandas da região como “Passeatas”, “Ulster”, “Corte Marcial”, “DZK”, e das gangues “Punk Anjo” de São Bernardo do Campo e “Punk Carniça” de Mauá, além de trazer à luz todo o processo de montagem da icônica “Ópera Punk”, criada por punks do ABC e de SP com o apoio da Prefeitura de Santo André. A Ópera Punk, um marco do movimento na cidade, reuniu naquele projeto nomes históricos da cena underground como Angeli, Pádua, Mário Bortolotto, Ariel, Índio, Antônio Bivar, Edu Silva e Barata.
Vários filmes entraram para a história da cinematografia brasileira ao se debruçarem sobre a realidade social e política da região. “Peões” de Eduardo Coutinho e “ABC da greve” de Leon Hirszman são dois exemplos de como o cinema documental pode nos ajudar a entender a sociedade, seus paradigmas e contradições.
O documentário “Punks do ABC” tem a missão de continuar esse trabalho, agora lançando suas lentes para um grupo cuja cultura foi historicamente marginalizada e estigmatizada, apresentando-o para as novas gerações.
Vamos resgatar a história do movimento punk, que tem identificação total com a região do ABC e trazer à tona dezenas de histórias de pessoas envolvidas com essa subcultura antagonista, esquecida, sublimada pela fronteira com a capital paulista, que absorve tudo o que tem em seu território e oculta o que está em sua margem. A sociedade local como um todo se beneficiará ao ver, finalmente, sua história contada.